terça-feira, 7 de agosto de 2012

Julgado

 Abro meus olhos devagar, com um pouco de dificuldade. A luz do sol me ofusca, aos poucos vou percebendo a cor purpúrea do céu. Nesse mesmo instante sinto uma dor do lado esquerdo da minha cabeça, que está no chão, dor que vai se irradiando levemente. O calor do sol pela manhã é agradável. Levanto-me um pouco desequilibrado, olho ao redor: estou no centro da cidade, mais especificamente encostado na parede externa de uma biblioteca. Ainda há pouco movimento de pessoas nas ruas, passando por mim sem me notar. Deve ser bem cedo, vejo as horas e o dia da semana no celular: 08:10hs,  domingo, o que também justifica o pouco trânsito de pessoas.
 Sinto sede, começo a caminhar, seria bom tomar uma cerveja agora. Vou ao banco retirar algum dinheiro. Entro, e vou em direção ao caixa eletrônico, porém, antes de chegar a ele, sou abordado por um homem. Ele é alto, usa roupa social e tem um ar variando entre o sério e severo.
 - Billy Gandolfi ?
 - Sim?
 - Você foi convocado a depor hoje à tarde. Compareça neste endereço no horário marcado. Compareça! E não se atrase!
 O homem se vira e sai. Olho o cartão, o endereço não é muito longe de onde estou: uns 30 minutos de caminhada. Não sei do que se trata, então começo a tentar lembrar o que aconteceu na noite anterior. Lembro que fui a uma festa com alguns amigos, no apartamento de alguém que eu não conhecia. Depois de algumas horas resolvemos sair comprar mais bebida e ficamos andando e bebendo pela rua. Depois disso, eu acordo nessa manha de domingo.
 Saio do banco e continuo meu caminho para o bar. Nos semáforos há alguns malabaristas trabalhando, em meio às buzinas de alguns carros que disputam seu lugar nas ruas com alguns cavalos e seus respectivos montadores. Pego um jornal pelo caminho, distribuído gratuitamente. A matéria principal fala como alguns estudos científicos associam o aumento do efeito estufa ao contínuo aumento do uso de cavalos no trânsito, além do aumento de acidentes, principalmente nas estradas, pelo depósito de dejetos animais em grande volume em alguns pontos, que acabam por tornar as pistas escorregadias e mais perigosas. É algo a se pensar, realmente faz sentido os argumentos apresentados na matéria, mas em contrapartida, um dos principais patrocinadores do jornal é a maior indústria de automóveis no país.
 Chego ao bar. O ucraniano no caixa me atende. É um homem aparentando seus 50 anos de idade, aspecto meio sujo, meio maltrapilho, carrancudo, como se implorasse para que o próximo dia não chegasse. Peço um pão e um bolinho de carne. Ele grita alguma coisa que eu não entendo – provavelmente na língua de seu país de origem - para uma menina que deve ser sua filha. Ela traz o pão aberto, coloco o bolinho dentro, dou uma mordida e peço um café. Como e bebo, estava bom.
 - Me vê um chineque, uma dose de conhaque e uma cerveja?
 Agradeço, pago e saio do bar, me sentindo bem melhor. O peso nos meus olhos e o leve cansaço que eu sentia diminuíram bastante. Mas de alguma forma ainda me sinto um pouco estranho, como se estivesse faltando alguma coisa em algum lugar e eu não sei bem o que é. Olho para o céu, que já esta com seu alaranjado característico e um esverdeado bem próximo do horizonte, que se consegue ver de vez em quando, em alguns pontos mais altos da cidade. Está quase na hora do meu “depoimento”, seja lá o que isso queira dizer. Vou até o endereço indicado no cartão: um prédio antigo, com 3 andares, ocupando meia quadra; paredes que devem ter sido brancas algum dia, mas agora estão sujas e em muitos pontos, principalmente nos cantos e nos detalhes arquitetônicos, enegrecidas e com aparência úmida. De duas janelas no 2º andar, duas vizinhas conversam com voz alta e estridente. Na entrada há uma porta dupla, alta e de madeira gasta, com a pintura verde claro quase toda descascada. Passando pela porta há um corredor estreito e escuro que dá para duas escadas: uma subindo, à esquerda; e a outra descendo, à direita. As paredes do corredor estão quase completamente pretas, emboloradas e parecem escorrer umidade de algum ponto. Pego a escada da esquerda. Do alto da escada vejo que estou em uma passarela que circunda um pátio interno, que dá a impressão do prédio ter sido um antigo colégio.
 Continuo subindo as escadas, pelo caminho vejo algumas crianças brincando. Algumas rolam pelo chão brincando com seus porcos de estimação. No último andar sigo pela passarela até chegar a um portão de ferro, passo por ele, ando por um pequeno corredor que dobra a direita e tem duas portas de cada lado e uma à frente. Entro na porta que está à frente, lá dentro há um homem sentado atrás de uma mesa, escrevendo alguma coisa em uma máquina de escrever. Ele usa óculos de grau pequenos e redondos, tem cabelos com aparência oleosa, lisos, finos e ralos sobre sua cabeça. Na mesa há um cinzeiro com algumas bitucas de cigarro, de uma delas ainda sai um pouco de fumaça. Aguardo em frente à mesa, ele continua escrevendo por mais alguns segundos, pára e me olha com indiferença:
 - Pois não?
 - Fui chamado a depor.
 Entrego-lhe o cartão. O homem o examina com o mesmo interesse com o qual me atendeu.
 - Pode seguir em frente.
 Sigo em frente. A sala toda cheira a algo bem velho. Aquele cheiro da umidade junto ao cigarro, aos móveis de madeira, ao sofá de tecido empoeirado em um dos cantos, a fraca luz alaranjada vinda de um único foco e a luz e o ar do dia que mal entrava pela única e pequena janela da sala: o cheiro parecia vir direto para o cérebro através dos poros. Abro a porta seguinte. É uma sala ampla e bem iluminada pelo que parece ser a luz do dia vinda pelo teto de vidro jateado. O tempo parece ter mudado, porque a luz vem clara e acinzentada. Parece uma espécie de tribunal, no estilo daqueles de filmes americanos, mas com poucas pessoas assistindo, algumas parecem levemente alcoolizadas. O homem no alto do tribunal fala com voz alta e autoritária:
 - Billy Gandolfi, você foi chamado aqui diante desse tribunal para responder pelo crime de assassinato.
 - Assassinato?! Mas eu...
 - Silêncio! Responda apenas quando lhe for pedido que o faça! Como você se declara?
 - Inocente! Na verdade eu nem sei de que assassinado o senhor...
 - Silêncio! Não o alertarei novamente. E dirija-se a mim como meritíssimo! Diante das provas apresentadas aqui, o senhor está impedido de sair do Estado até o fim das investigações. Aguarde ser chamado nas próximas semanas ou meses. Pode se retirar.
 - Mas merit...
 - Está dispensado - por hora! - senhor. Ou eu terei que pedir que o acompanhem?
 Viro-me e saio. Ao sair, reparo que na ante-sala há algumas galinhas que eu não havia notado antes. Elas ciscam o carpete e andam pelos cantos. Ao sair do prédio vejo que o céu está nublado, mas ainda claro. Encontro um amigo meu andando pela calçada. Ele vem falar comigo:
 - E ae Billy! Que cê tava fazendo aí?
 - Fui convocado a depor.
 - Sobre o que?
 - Não sei.
 - Como assim? você foi chamado pra depor e não sabe sobre o que?!
 - Ah, é alguma coisa sobre assassinato.
 - O que que você tem a ver com isso?
 - Não sei.
 - Humm... vamo chegar lá no bar na frente da facul. A galera vai lá hoje.
 - Beleza.
  Afastamos-nos do prédio antigo. Dou uma olhada para trás. Em uma das janelas do 1º andar, o homem alto que me encontrou no banco nos observa, com a mesma expressão variando entre sério e severo.

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